Trecho de entrevista com o virologista Dr. Paolo Zanotto (em rede social) e comentários nossos sobre alguns conceitos filosóficos.
[…] Zanotto : Mas quem lhe disse que vidas são importantes ? Para alguns grupos, o importante é o poder. Joseph Ratzinger (o papa emérito Bento XVI) disse outro dia algo muito interessante : “Quando não há princípios superiores, tudo é poder pelo poder”. A gente vive numa realidade em que os aspectos que definem a civilização humanista estão deixando de valer.
Hannah Arendt, uma das filósofas mais importantes, resgatou a necessidade de valores, da distinção entre o certo e o errado, entre o bonito e feio. Quando jovem, ela foi aluna do filósofo Martin Heidegger. Tiveram até um caso amoroso. Depois disso, com a ascensão do nazismo, ela foi para os Estados Unidos e se tornou uma acadêmica muito respeitada. Durante a Segunda Guerra, Heidegger se tornou reitor da Universidade de Freiburg. Em seu discurso de posse, ele fez uma apologia do nazismo. Quando acabou a guerra, Hannah Arendt visitou Heidegger na Alemanha. Todo mundo ficou horrorizado. Mas por que ela fez isso? Porque precisava saber como uma pessoa como Martin Heidegger se dobrou àquilo.
Esse encontro foi fundamental para que, tempos depois, ela participasse do julgamento do criminoso nazista Eichmann em Jerusalém, que resultou em um de seus mais famosos livros. Esse período de Hannah Arendt em Jerusalém se resume a uma única frase, que eu guardo no meu coração: “Quando a necessidade substitui a verdade, o mal se torna banal”. Ela não foi conversar com Heidegger porque tinha saudades do velho professor. Ela fez isso para coletar informações e entender o problema do mal. No julgamento de Eichmann, ela encontra um burocrata, que cuidava da família, que se preocupava porque os soldados nazistas matavam as pessoas com um tiro na cabeça de forma errada, fazendo com que as pessoas sentissem dor. Eichmann era uma “pessoa normal”.
Ela escreveu sobre a banalização do mal, que é uma decorrência da falta de valores superiores nos seres humanos. […]
Comentários meus (não abordarei o viés político) :
“Quando não há princípios superiores, tudo é poder pelo poder” : sábia frase, de um sábio homem (Ratzinger). Lembrando que por “princípios superiores” não é obrigatório supor um deus, seja ele qual for.
Qualquer pessoa dotada de uma ética (princípios internos que norteiam nossa ação moral) rigorosa e elevada dispensa tanto um deus quanto uma moral, um código de conduta. Pessoalmente, não preciso de um mandamento para não matar, nem de uma lei para não roubar. É um erro primário confundir “princípios superiores” com uma moral ou uma religião, como se os não-crentes fossem todos regidos por princípios inferiores…
Banalização do mal : a perspectiva de Hannah Arendt sobre a questão do mal não é religiosa nem moral, é política. É preciso muito cuidado, para não misturar convicções de foro íntimo com conceitos.
A filósofa não fala do mal como pecado, pelo contrário – ela discute o mal como algo banal, que qualquer pessoa comum é capaz de cometer sem uma motivação maligna (cobiça, vingança, perversão, ódio etc.).
Refletindo sobre as ações de Eichmann, Harendt afirma que ele agiu como agiu simplesmente por não ter conseguido pensar autonomamente : agiu por condicionamento, por não ser capaz de pensar por si só e fixar a fronteira da ação impossível de ser cometida. Agiu assim porque abriu mão de sua capacidade de julgar.
Novamente, a conclusão que alia a banalização do mal à falta dos tais princípios superiores [religiosos] é, no mínimo, apressada, para não dizer equivocada.
Marly N Peres