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Homero e a Covid

O tempo vai passando e nossos sentimentos flutuam e ficam mais densos. As mensagens nos grupos de Whatsapp perdem fôlego (já é alguma coisa). Bate um desânimo, aumenta a incerteza.

Nossas vidas foram de repente interrompidas, num tranco súbito como uma guerra. E as coisas ficam suspensas num fio invisível de tempo, esgarçado e frágil. E os armários cheios de roupas que se tornaram inúteis, os sapatos ali quietinhos, como que querendo pular do armário e ir passear, tudo em excesso, tudo muito mais do que deveríamos ter.

Parece sobrar tempo, e dá enfim para darmos tempo ao tempo e ler aqueles livros todos que nunca dá tempo de ler. Porque se a delicadeza se torna mais necessária, e as pessoas fazem falta (outras sobram…), e as disputas se revelam inúteis, e a vaidade vã, e as plantas sorriem para nós, e o silêncio é um presente, e a inquietude um fardo, e a falta de perspectiva um assombro – a leitura, a escrita e a reflexão se tornam mais do que nunca uma necessidade.

O que fazer, senão prestar atenção ao real, pensar e falar sobre ele. Só descrevendo, sem psicologizar. Amparados em Homero, que nunca cedeu à tentação de interpretar, ou de fazer floreios de análise psicológica. Não, pura perda de tempo : quando nos descreve simples e honestamente os gestos, os arroubos, os movimentos, as falas dos personagens, ele pinta um quadro impressionante das paixões, dos excessos, da nobreza, da doçura. Ou seja, de nossa humanidade.

Homero traça um contraste que nenhuma edição de imagem, nem com toda nossa super tecnologia digital, consegue : o contraste inadmissível entre a vida e morte. Ecoando surdamente e dando o tom de nossa humana e efêmera condição.

 

Marly N Peres