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Covid, Clifford, William James e o direito de crer

Observe o mundo pela janela. Lá fora, uma credibilidade infundada em alguma fé política, numa palavra jogada ao vento, numa manifestação incompreensível, enxerga ?

O século XXI parece ter lançado aos nossos olhos a verdade mais cruel inventada pelos regimes políticos totais do século XX : a inverdade contumaz. A adesão irrazoável a uma fé providencial que, como um Deus ex-machina resolveria nossos problemas e uma crença absolutamente sem provas : eis onde alguns se encontram no desafio frente à Covid-19.

Pensando nisso, lembrei-me de uma polêmica entre os filósofos William Kingdom Clifford e William James. Em um ensaio de 1877 sobre a ética da crença, Wiliam Kingdom Clifford chegou à conclusão que sempre é equivocado, em qualquer lugar e para qualquer um, acreditar em alguma coisa com base em provas insuficientes. Para ilustrar, Clifford nos lança um caso para refletirmos.

Imaginem o proprietário de um navio que, assolado por dúvidas de que a embarcação não estava em boas condições, torna-se infeliz, pensa em reequipá-la, em reinspecioná-la, mas conclui que isso lhe custaria muito. Este proprietário, antes de zarpar, deixa de lado essas dúvidas : ele escolhe crer na providência, em Deus, que não deixaria todos os passageiros morrerem, logo eles, que desejavam dias melhores alhures. Ou seja, o proprietário está realmente crente de que sua embarcação está segura. Daí, é claro, o navio afunda.

Ou seja, mesmo que o dono do navio acreditasse verdadeiramente que tudo daria certo, ele não tinha direito de o fazer. Pois, ao fazê-lo, nenhuma prova conclusiva corroborava essa crença.

Willian James não discordava de Clifford nesse ponto. Entretanto, rebatia o argumento, ao dizer que em alguns casos era legítima a crença sem provas conclusivas. Isto, é claro, apenas nas situações em que essas provas fossem de difícil obtenção ou mesmo impossíveis de se adquirir : há situações em que a própria suspenção da crença significa fazer uma escolha por vezes mais deletéria do que a manutenção desta crença. Além disso, diz James, em alguns casos a própria crença (com provas insuficientes) pode acarretar sua própria verdade.  Em um exemplo clássico, se creio que alguém gosta de mim, provavelmente serei gentil com esta pessoa e, muito provavelmente, irei provocar aquilo em que acreditava.

A pergunta que me faço é : o ato de crer numa cura da Covid-19, o ato de desmerecê-la tornando-a menos importante do que é, trata-se de um direito de crença justificável ? Posso justificadamente escolher naquilo em que crer ?

Tanto pela pena de Clifford, quanto pelos escritos de James, não. Este último, por exemplo, rejeitava o direito de crença sem fundamentos para as questões que não são opções genuínas, ou seja, aquelas em que não se pode decidir com fundamentos racionais e razoáveis. As questões científicas, portanto, estão fora desta seara. Devemos ouvir os médicos, a OMS, a ciência.

A história narrada por Clifford é uma bela metáfora de nossos dias. Somos os passageiros, mas involuntariamente. Resta-nos decidir se permitiremos que o navio afunde.

Rafael Tubone