Esta resenha crítica se faz a partir do impressionante “Crépuscule d’une idole – l’affabulation freudienne” (Crepúsculo de um ídolo – a fabulação freudiana), publicado pelas Ed. Grasset em 2010, de autoria do respeitado filósofo Michel Onfray, autor de mais de 100 livros e que mereceu em 2019 uma edição dos cobiçados Cahiers de l’Herne em sua homenagem, algo como o graal do gênero, na França.
Este livro sobre Freud é um levantamento minucioso feito por Onfray, que quando se debruça sobre um autor lê a obra completa, biografia, correspondências inclusive. Levantamento minucioso e impiedoso, porque feito com critério e método.
Ateu militante, nietzscheano, epicurista e anarquista, o fundador da Universidade Popular de Caen considera que educação é sinônimo de libertação do eu, de si mesmo.
Pode-se não gostar dele, mas não respeitá-lo é difícil. Traduzido em 28 idiomas, seu 100º livro, Sagesse (Sabedoria), é a terceira parte de uma trilogia da qual os dois primeiros volumes venderam nada menos do que 260 mil exemplares. Sagesse mereceu uma 1ª edição de 100 mil exemplares.
O livro propõe ter “coragem face à morte, para todos os que não acreditam em Deus”. No rastro do passo de autores romanos, diz que “Um filósofo deve ser um gladiador”. E que “Ao pé do vulcão que rosna e ameaça explodir, nossa única tarefa é saber viver aqui e agora, eretos, verticais.” “Saber morrer é saber viver.”
Outros livros que vão na mesma linha do Crepúsculo de um ídolo são :
“Le Livre noir de la psychanalyse. Vivre, penser et aller mieux sans Freud” (O livro negro da psicanálise. Viver, pensar e ir melhor sem Freud), obra reunindo 40 contribuições, de autores dos mais diversos campos do saber – são historiadores, psiquiatras, filósofos que fazem uma análise crítica focando sobretudo a história da psicanálise e a cientificidade das teorias freudianas, sem deixar de abordar casos de fracasso terapêuticos. Obra coletiva, foi publicada em setembro de 2005 pelas Ed. Les arènes, sob a direção de Catherine Meyer.
“Mensonge freudien – histoire d’une désinformation séculaire” (Mentira freudiana – história de uma desinformação secular), de Jacques Benestau, publicado em 2002, pelas Ed. Mardaga.
Seu autor é psicólogo clínico que por um livro sobre o autismo recebeu o Prêmio da Sociedade Francesa de História da Medicina. Depois de 26 anos de carreira em pedopsiquiatria, trabalha atualmente no Serviço de Neuropediatria do CHU de Toulouse e é desde 1974 professor do Instituto de Formação em Psicomotricidade da Faculdade Medicina de Toulouse-Rangueil.
Seu livro sobre Freud faz uma síntese iconoclasta – para usar as palavras do editor –, revelando ao grande público informações e novos pontos de vista sobre o estado real do freudismo, após um século de existência.
Denuncia o que chama de imposturas, algumas já conhecidas, com base em estudos que reúnem dados surpreendentes e que revelam algo que aparece mais e mais como uma invenção mentirosa, e seguramente como uma retórica de desinformação, afirma ele.
Pés de barro
Onfray explica a origem de seu livro (Crepúsculo de um ídolo) dizendo que após reações à publicação do Livro negro da psicanálise ele tratou de lê-lo e que ele o surpreendeu por apresentar fatos históricos verificáveis. De outro lado, a lenda ; defendida por gente que tem um interesse, diz ele, trivial e extremamente material – gente que tem na psicanálise uma atividade rentável, e que, portanto, manifesta o citado interesse em que tal atividade possa continuar.
Não se trata em absoluto de fazer uma crítica da psicanálise, mas de Freud.
Até porque nem toda psicoterapia é indefensável, nem toda psicologia é psicanálise, nem toda psicanálise é freudiana e nem todo psicanalista (freudiano) é necessariamente mau.
Mas por que Freud como pessoa ? Porque, diz Onfray, como nietzscheano que é, fará a análise de uma perspectiva nietzscheana : considera que Nietzsche tem razão quando diz, no Prefácio da “Gaia ciência”, que só o que temos como filosofia é a filosofia da nossa própria pessoa e que toda filosofia é a autobiografia de um corpo. Isso funcionou na leitura e análise de Nietzsche, dos filósofos anteriores a Nietzsche e dos posteriores. Por isso, diz ele, tratou de ver como seria com Freud. A leitura crítica da pessoa de Freud.
Pois, ao lado de Marx e Nietzsche, Freud tinha impactado Onfray quando ainda jovem adolescente pobre e que tinha sido obrigado a viver num orfanato de padres salesianos. Marx, por afirmar que a sociedade capitalista não era um horizonte intransponível e que havia coisa melhor. Nietzsche, por propor que o Vaticano fosse riscado do mapa e sobre os escombros se criassem serpentes (final do “Anticristo”) – pessoalmente, considero que seria uma pena, por causa das obras de arte e belas pinturas do teto (que vi em visita virtual pela internet, pois meus pés jamais pisarão aquele solo).
E Freud, por ter declarado que a masturbação não é um problema, não faz crescer as orelhas, nem torna ninguém imbecil.
Ora, a leitura de dados históricos indiscutíveis derrubou não o Vaticano – o marxismo não precisou ser derrubado, caiu sozinho –, mas Freud.
O Freud que nos é descrito (com base em vasta documentação) é um misógino, falocrata e homófobo – diz Onfray.
Um Freud que faz uma dedicatória a Mussolini, diz que Moisés é egípcio e não judeu e que o pacifismo de Einstein é uma tolice.
Além de afirmar que a pulsão de morte é inelutável e que por isso o povo é uma massa que precisa ser guiada por um grande homem. O que é um elitismo só comparado ao de Lenin, cuja citação a esse respeito transcrevo mais adiante. Ou seja, Freud é um defensor do cesarismo fascista em pleno século XX.
Há provas históricas palpáveis : Freud trabalha com o Instituto Goehring. Lembrando que o nazismo nunca recusou a psicanálise enquanto tal : o nazismo perseguiu psicanalistas judeus porque eles eram judeus e não porque eram psicanalistas, tanto que outros psicanalistas puderam continuar a trabalhar sob o 3º Reich justamente porque Freud aderiu à causa, colaborou, defendeu seus interesses.
Ficamos por muito tempo com a impressão que Freud foi um liberador, feminista, libertador da sexualidade. Isso sob a influência de um marketing persistente, oriundo do fato de a clientela de Freud ter sido composta de membros da aristocracia e da alta burguesia – cada sessão de uma hora custava o equivalente a 450 euros hoje. Freud dizia que as sessões tinham que ser diárias e pagas em dinheiro líquido. Em 1925 ele tinha 8 pacientes, é fácil fazer a conta de quanto dinheiro ele ganhava – e sem pagar imposto.
Ou seja, sua reputação se constrói no início por ele ter uma clientela rica e muitas vezes famosa (Maria Bonaparte, sua “patrocinadora” é só um exemplo ; a respeito da clientela aisée (“abonada”) de Freud, veja-se publicação Milionárias desocupadas, neste Blog. Mais tarde, vem se somar a sedução que suas teorias e esse marketing primeiro exerceram sobre os homens de letras e depois sobre os artistas. Criava-se a aura.
Até porque, além da noção de prestígio havia o fascínio pelo discurso do “vamos todos gozar à vontade”, sem culpa.
Sobre a sociedade Freud diz o contrário : nada de ficar à vontade. Ele afirma textualmente que não se deve libertar a pulsão de sexualidade – a libido – da sociedade de modo geral, pois, ao contrário, precisamos dela para constituir uma civilização. A civilização, diz ele, se constitui pela repressão da pulsão sexual.
E diz mais : se alguém estiver sofrendo porque se sente oprimido, desse ponto de vista, deite-se no meu divã – pagando a fortuna que eu cobro – e eu liberto você como indivíduo, mas nem pensar em mexer com a sociedade, que deve ser mantida como é, sob controle. De onde sua noção (ao menos ele era coerente) de que homens como Mussolini e Hitler eram necessários. Aliás, Lenin e os bolcheviques tinham a mesma opinião.
Frase de Lenin que foi tese que serviu de base para a construção do Partido Bolchevique :
“A massa trabalhadora não passa de portadora de instintos de revolta de uma energia revolucionária. Por sua própria natureza, ela é incapaz de um papel organizador, criador. Ela não é capaz de traçar os caminhos da revolução, nem de criar as formas da sociedade futura. Esta tarefa cabe ao grupo de revolucionários esclarecidos, consagrados à idéia de revolução. Em consequência, o primeiro dever do Partido dos revolucionários esclarecidos é o de estabelecer sua hegemonia completa sobre as massas. Essa hegemonia só será possível com a condição que o próprio Partido seja um organismo no centro do qual funcionará um mecanismo muito refinado, que tomará todas as disposições com relação ao Partido, não admitindo qualquer tipo de enfrentamento ou conflito, nem um único grão de poeira. Esse mecanismo será o Comitê Central do Partido. Sua vontade e suas disposições serão lei para todo o Partido”.
Outros preferem a religião, como instrumento de controle. Enfim…
Quanto à misoginia, isso não é novidade. Reduzir a mulher a um ser que tem inveja do pênis, um homem incompleto, é mais do que um insulto, é raso. Não me dedicarei sequer a comentar.
Fontes
Onfray prossegue : Freud “pegou emprestadas” noções de outros autores e cientistas da época, sem falar da mitologia grega e jamais deu os créditos, fez sempre de conta que tinha inventado tudo : inconsciente, ato falho, lapso linguístico, significado dos sonhos etc.
Com a maior cara de pau ele chegou a forjar um conceito para desculpar o fato de ele ter “se esquecido” (citando expressão original empregada por ele) da autoria de certos conceitos : criptomnésia. Literalmente (em grego, como sempre), esquecimento enterrado. O contrário de aletheia, verdade sobre a qual se joga luz.
Vale dizer que Freud sempre se debruçou sobre os gregos, mas, ao contrário de Jung, nunca citou as fontes. De eros a thanatos, passando pelo complexo de Édipo, tudo é grego. E ele afirmava calmamente que talvez tivesse lido, mas não se lembrava, e como não se lembrava então era tudo dele.
Voltando a Onfray. Sobre o que Freud tomou “emprestado” da filosofia de Empédocles – por exemplo mas não só –, limitou-se a dizer a mesma coisa, acrescentando que ele mesmo, Freud, era mais importante do que Empédocles…
Outro problema, aponta ele : Freud, que queria desesperadamente o Prêmio Nobel e não conseguia, escreve o seguinte em 1917, sempre à espera : há 3 ataques narcísicos à humanidade – Copérnico, Darwin e eu !
Copérnico porque expôs que a Terra não é o centro do Universo, é um mero ponto (e, portanto, não podia ser a criação dileta de um criador imaginário, como queria a Igreja católica). Ataque astronômico.
Darwin porque expôs que o ser humano não é especial, é um animal como os outros, uma simples variação. Ataque biológico.
E ele mesmo, o grande Freud, porque teria exposto que o eu não é senhor em sua própria casa. Descoberta, diz o próprio Freud com a modéstia de sempre, muito mais importante do que as de Copérnico e Darwin.
Freud considera que é um cientista. Ou seja, que algumas descobertas de sua época e toda uma série de princípios herdados da mitologia e do pensamento gregos – tudo bem formulado e embalado por ele –, que tudo isso configurava uma ciência. E que o ser humano e sua psique (até esse termo ele traz da Grécia) são passiveis de ciência, o que é mais grave.
Ora, o que define a ciência é ser uma investigação circunscrita sobre um objeto determinado. Passível de prova.
Freud não deve ter lido Aristóteles, que explica magistralmente a diferença entre prova e demonstração logicamente necessária. A primeira, obrigatória para a ciência. A segunda, obrigatória para o logos, ou seja, para todos os campos do conhecimento que trabalham pelo discurso e não são ciência. Mas Freud seguramente acreditava saber mais do que Aristóteles…
Voltando a Onfray. No inconsciente, sua descoberta, está tudo : o complexo de Édipo, a morte do pai etc. E de duas uma, nos diz Freud habilidosamente – ou bem você se lembra (o que prova que tenho razão), ou você não se lembra (o que prova que tenho razão, por isso significa que tudo isso foi rejeitado).
Uau, que silogismo ! – digo eu.
Ou seja, nitidamente ele transformou verdades pessoais, subjetivas e solipsistas dele em verdades universais. Exemplo : ele mesmo declara que ainda menino, no trem para Leipzig não pôde deixar de ver a mãe nua e não pôde não desejá-la. Ora, se ele desejou sexualmente a mãe, todo menino deseja sexualmente a mãe !
Como ele transforma essa verdade pessoal em verdade universal ? Sob pretexto de ter examinado seu próprio inconsciente. Ou seja, sob a capa de um cientificismo se esconde uma psicologia literária, aponta Onfray.
Conclusão
O trabalho de filósofo é o de antropólogo (ir sempre à origem de um conceito ou expressão ou ideia) e em seguida o de fazer a história do pensamento. Aliás, a filosofia da história do pensamento.
De modo cru, sem concessões. Sem preferir as mentiras que nos seduzem às verdades que nos inquietam.
Sem se manter de joelhos diante de (falsos) ídolos, em atitude de subserviente adoração. Não é fácil admitir que se errou, sobretudo quando se é um intelectual, porque isso significa admitir que erramos ali onde não podemos errar, erramos no que define nosso ofício – o pensamento. É duro olhar no espelho e admitir que se pensou errado, quando se é um intelectual. É mais ou menos como um açougueiro admitir que não sabe cortar carne.
Talvez por isso tanta gente recuse evidências que atestam um erro político. Mas isso é uma outra história.
Nem todo psicanalista é mau, evidentemente. Muitos, sejam eles lacanianos, freudianos, junguianos ou outros, conseguiram incendiar o ídolo, jogá-lo na fogueira. E fazem um trabalho honesto e proveitoso. Mas aqui a questão é admitir que se leu errado, que se entendeu errado. Fazer um mea culpa.
Nietzsche nos diz, em seu “Zaratustra”, que os Deuses não tiveram crepúsculo, que eles morreram de rir (o que é um trocadilho, em alemão).
“Há muito tempo tiveram fim os velhos Deuses — e, em verdade, foi um bom fim, alegre, de Deuses ! Eles não tiveram um “crepúsculo”: — isso é mentira ! O que houve, isto sim, foi que um dia morreram de — rir ! Isso ocorreu quando as mais ímpias palavras saíram da própria boca de um Deus : “Existe apenas um só Deus ! Não deves ter nenhum outro Deus além de mim !” (Êxodo 20:3) – um velho deus barbudo e raivoso, bastante ciumento, excedeu-se a esse ponto.
E todos os Deuses caíram então na risada […]”
Se pudesse ler ou ouvir seu discípulo Michel Onfray, Nietzsche provavelmente exultaria e daria boas gargalhadas. Demolir ídolos era com ele mesmo !
Marly N Peres