Você está visualizando atualmente Apologia de Sócrates

Apologia de Sócrates

O texto que se segue é um brevíssimo e despretensioso resumo da indispensável obra de Platão, como um primeiro contato, uma amostra, um convite à leitura.

“Sou acusado de ser bom orador. O problema, é que não sou bom orador como eles, nos moldes deles, à maneira deles. Eu procuro a verdade e procuro dizer a verdade, ao contrário deles, de quem vocês não ouvirão nada ou quase nada que seja verdade ou verdadeiro.

Meu discurso não é, como o deles, feito de termos escolhidos e sabiamente ordenados. De mim vocês não ouvirão discursos recheados de expressões e locuções floreadas, mas sim as primeiras palavras que me vêm ao espírito, sem elaborá-las, sem arte. Todavia, tenho a convicção de não dizer nada que não seja justo.

Não seria digno de mim e da minha idade modelar meu discurso. Farei minha defesa como falo sempre. E vocês me julgarão não pela forma do que digo, mas pelo conteúdo. O mérito do juiz é esse. Quanto ao mérito do orador, é dizer a verdade.

Sócrates examina em sua apologia 3 categorias de homens que se fazem representar pelos 3 acusadores : os oradores, os artesãos e políticos, e os poetas.

Ora, diz ele, só o que tenho feito é examinar o que fazem as pessoas e meus alunos põem-se a proceder da mesma maneira. Porque muitos são os que dizem saber muita coisa e, na verdade, não sabem nada, ou sabem pouco.

E por isso sou acusado de corromper a juventude. Nenhum dos meus 3 acusadores soube dizer o que ensino, que possa corromper os jovens alunos.

Como não sabem o que dizer, repetem as banalidades que se costuma dizer de quem se ocupa de Filosofia : que somos gente que se interessa por tudo o que acontece no céu e na terra, que não acreditamos nos Deuses e que transformamos as más causas em boa causa.

Mas quanto a dizer o que é a Verdade, quando eles fazem conta que sabem o que não sabem, e como eles são gente que gosta de receber honrarias, como são numerosos e agressivos, como se unem e sabem convencer, enchem os ouvidos de vocês de calúnias, e é com elas que sou hoje acusado.

No meu curto tempo de defesa, vai ser difícil arrancar da mente de vocês essas calúnias que foram se enraizando. Eu vou dizer a verdade, sem esconder nem dissimular o que quer que seja.

Em seguida, Sócrates acusa os juízes de se interessarem por temas pelos quais nunca se interessaram antes. Se volta para o primeiro e pergunta ele costuma se dedicar a examinar quem torna as pessoas mais virtuosas. Diante da resposta afirmativa, pede ao juiz que diga então quem faz isso, já que ele, Sócrates, está sendo acusado do contrário. Silêncio.

Sócrates espicaça o juiz, que acaba afirmando que as leis é que tornam as pessoas melhores. Sócrates não se deixa enganar e o outro acaba respondendo que são os juízes que tornam as pessoas melhores.

E Sócrates vai enrolando o juiz em seus próprios argumentos : a assistência, os senadores, toda a população de Atenas torna as pessoas melhores. Com exceção dele, Sócrates. Um só os corrompe e todos os outros os melhoram.

E prossegue. Interroga sobre alguém preferir ser enganado e a intenção deliberada dele mesmo, de enganar. Argumenta de tal modo que o juiz fica sem argumentos sobre o que merece castigo.

Ridiculariza o juiz também quanto à acusação de propor outros Deuses aos jovens, diferentes dos Deuses da cidade. Aliás, acusação de não crer nos Deuses. Incréu. O que em todos os tempos assusta e provoca ira e ódio.

Sócrates prossegue, arguindo impiedosamente. Uma pergunta, uma hipótese que a cada vez se desdobra em duas – e o pobre interlocutor se perde em suas próprias respostas. Zomba, destrói, demole.

E declara à cidade que ele não é o primeiro nem será o último homem justo e de valor para a cidade, a ser condenado.

O que interessa, diz ele, é se um homem age de modo justo ou injusto. E relembra o caso do filho de Thétis, Aquiles, que mesmo avisado pela mãe que o destino fatal espera por ele, se matar Heitor, o mata, para vingar a morte do amigo Pátroclo.

E afirma : um homem faz o que tem que fazer. Todo homem deve considerar não a morte, ou qualquer outro perigo, mas sim a honra.

Um filósofo deve viver como tal, examinando a verdade das coisas. Esse é o posto a honrar.

Um bom amigo, o Prof. Milton Meira do Nascimento, costuma dizer que “Filosofia é procedimento”, o que dispensa comentários e é mais do que uma simples afirmação, é lição e exemplo de vida.

O que é imperdoável, diz Sócrates, é achar que se é sábio, quando na verdade não se é. Ignorância repreensível, de acreditar que se sabe o que não sabe.

Não deixarei de exortá-los, nem que essa seja a contrapartida para não ser condenado à morte.[1] Se tal me fosse proposto, eu responderia que enquanto eu tiver um sopro de vida, enquanto eu for capaz, não esperem que eu cesse de filosofar. Mil vezes eu tivesse que escolher, mil vezes repetiria essa escolha.

Esses homens que me condenam não conseguem me prejudicar, pois como podem homens que não são de bem prejudicar um homem de bem ? Mal maior é condenar um inocente.

Além disso, não é em causa própria que me defendo, longe disso. É por amor a vocês, pois temo que, me condenando, vocês ofendam um Deus. Pois é difícil encontrar alguém mais ligado à cidade do que eu e preocupado com seu bem. É preciso admitir que há algo maior, mais do que humano, que me faz negligenciar tudo o que é meu, para tratar de tornar todos e cada um mais virtuoso, qual um pai ou um irmão mais velho.

E faço isso sem salário. Nenhuma testemunha a não ser minha pobreza.

Isso que eu digo que é mais do que humano é uma voz que me acompanha sempre e me insta a permanecer na vida privada, jamais na vida pública, na política. Prefiro aconselhar cada um particularmente, ao invés de aconselhar a cidade enquanto tal.

Nada fazer de injusto nem de ímpio, eis minhas únicas preocupações, e não a vida. Nunca cedi nada a ninguém, que fosse contrário ä Justiça.

Escapar à condenação não é escapar à morte, pois assim não nos tornamos imortais.

Não busquei a riqueza, em vez de buscar a virtude. E não há mal possível para o homem de bem nem durante a vida nem após sua morte. E os Deuses não são indiferentes a isso.”


[1] Lembrando que o mesmo fez Spinoza, que preferiu ser proibido de dar aulas, foi banido, teve a casa queimada e o chão salgado, teve a família maldita por 3 gerações, mas não obedeceu aos rabinos de sua cidade, que exigiam dele a retratação ao seu magnifico Tratado teológico-político.

Marly Peres