Um silêncio quase palpável. O céu calmo, mas a ameaça de tempestade paira.
Pandemia. Penso, te revisito, te vejo com os olhos da mente.
Tuas ruas solitárias e vazias, tuas fachadas ocre, regulares, proporcionadas e
proporcionais, suaves e alinhadas sem sobressaltos. Cada relance de olhar é um naco
de eternidade.
Tuas ruelas, tuas passagens. Tua beleza única, feita de tradição e história, de
proporção e cuidado, de suavidade e força. É com os olhos molhados de tristeza que
erro por tuas paisagens e ruas, agora na imaginação. A riqueza de tuas regiões, teus
telhados, teus caminhos, tuas estradas ladeadas de peupliers, teus rios, tuas colinas,
tuas tantas cidadelas medievais. Um arquiteto avisado não teria feito melhor, sequer
um demiurgo.
Um salto sobre o oceano azul e chego à mais bela ilha, a ilha de beleza. Em todos os
meus muitos dias de vida, já, jamais pude estar numa Natureza mais
assustadoramente bela. De cortar o fôlego, de encher os olhos para sempre, de fixar o
significado da palavra beleza, como se nada antes ou depois o merecesse (sem falar de
Paris, é claro, caso à parte). Córsega linda e forte. Orgulhosa, briguenta, dona de seu
destino. Mas acolhedora de quem a respeita, salutar distância sem hipocrisia. Córsega
anil, profunda e alta, diferente, plena de si mesma.
Ali tem-se a impressão de estar fora do tempo, entre calafrios diante de tanta riqueza
visual e sopros de vida cálida e calma. Maravilhamento. Contornos perfeitos, turquesa
que flutua.
Não se contempla nem deseja a Córsega impunemente. Ela tem códigos e não se deixa
aprisionar sem resistir. Nem o infelizmente famoso almirante Nelson saiu ileso, pois ali
perdeu um olho, na luta que a ilha lhe impôs, uma pequena ilha contra a armada
inglesa, luta inesperada e longa : 2 meses de combate, 40 dias de sítio e 24 mil tiros de
canhão, antes de ceder.
É isso, a Córsega, cada curva um recorte de surpresa, cada ponto de vista um
vislumbre inesquecível. Aquele lugar cujo nome ninguém sensível hesita em
responder, se perguntado onde gostaria de passar o resto da vida. Azul profundo, azul
noite, azul corso.
Volto ao hexágono, continente.
O campo, acolhedor e apaziguador, de pedras e recortes, de paisagens sem fim, por
onde erra a vista, devagar e calmamente. As falésias, os bosques, os castelos, os
muitos monumentos, as agulhas das catedrais, os teatros, as janelas alinhadas e
regulares, os arcos do triunfo, as estátuas, as asas da Vitória encimando colunas, suas
praças quadradas e perfeitas, as arestas da rica arquitetura, os espelhos d`água, as
fachadas, as fachadas. As janelinhas encrustadas nos telhados, as heras que forram
paredes e muros, nesgas de céu, calçadas, ruas e ruas. As árvores tantas, os jardins, os
squares, os bosques, as florestas, o farfalhar das folhas e copas.
A neve, os vales, as planícies, as gargantas, as encostas, as pontes, os cursos d`água, os
campanários, os sinos. A uniformidade e a delicadeza de teus dons doces e sem
soluços de mau gosto. Tuas ovelhas, teus balcões que se debruçam, teus vilarejos, tuas
estações de trem. A musiquinha que marca o tempo dos trens. Tuas livrarias, tuas
passagens cobertas, tuas galerias. Tua incomparável simetria. Tua irrepreensível
harmonia.
Teu capricho, teu encanto, teus silêncios. Longe de ti, tudo é espera, tudo é silêncio,
tudo é medo de não te rever, de não te respirar, não pisar teus caminhos e ruas, não
contemplar teu céu de luz sem igual, de um azul profundo sem comparação.
Tremulo, tenho medo. Silêncio vertiginoso. Ausência vertiginosa. Distância abissal.
Há algo de trágico e triste nessa solidão de ti, nesse silêncio imposto e obrigatório.
Qual sinfonia que faz chorar porque arranca de nós aquilo que dói, que pulsa, que
lateja baixinho para ninguém ouvir.
Por vezes íntima, rica, soberba sempre, majestosa. Tuas chaminés sem fim, teus
portões, teus gradis, tua água presente em toda parte, tua geometria, tuas vielas, tuas
escadarias, tuas torres. Teus terraços de café, tuas cadeiras.
Paisagem encantada, de reflexos por vezes dourados. Paisagem visitada pelo
pensamento, pela saudade imensa e sufocante, mas cheia de graça, ternura e
esperança. És tu, és tu, serás sempre e para sempre tu. Te penso de longe, te aspiro e
desejo, te enlaço – congelada no tempo e no silêncio, na falta que me fazes e que me
esvazia e acabrunha.
Marly N Peres