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Pão, circo e templos

Num áudio e texto anteriores, falando da série televisiva “Bárbaros”, prometi explicar por que fomos levados a acreditar que nossa herança ocidental é romana, e não grega.

Roma nunca dominou a Grécia. Ela impressionou por sua capacidade militar. Por motivos técnicos, os romanos tinham uma capacidade de mobilização superior.

A civilização grega incluía do Afeganistão atual a Rabat, no Marrocos, muito mais do que a tradição cristã-hollywoodiana nos fez acreditar.

Citando Paul Veyne, o grande historiador e arqueólogo contemporâneo, maior autoridade viva em Roma antiga, “O que chamamos de cultura romana é a cultura grega !!”.

Ele tem razão. A Grécia era “A” civilização, simplesmente. “Os romanos sabiam muito bem disso e, por esse motivo, é que sua primeira atitude, quando do primeiro contato com a Grécia, foi, em vez de professar um nacionalismo imbecil, assumir os valores gregos a título de butim. Esse é o maior elogio que se pode fazer a eles.”

Isso não tem nada de único, acontece até hoje. Veyne nos dá o exemplo do Japão, que se tornou um país ocidental e só muito recentemente foi suplantado pela China como 2ª potência econômica do planeta. Outro caso é o da chamada civilização islâmica, que nada mais é do que a herança iraniana assumida.

Quanto aos romanos, de Virgílio a Cícero só o que eles diziam ter como objetivo era suplantar seus mestres gregos :  o primeiro escreve a “Eneida” como sequência da “Ilíada”, de Homero, a quem diz querer homenagear na apropriação de Enéas, o troiano que foge de Tróia incendiada para fundar literalmente a Itália ; e o segundo declarava sem complexo ter suplantado (segundo ele) o grego Demóstenes. Qual a arte de Cícero, agiota profissional ? A retórica, invenção grega.

O que fizeram os romanos ? “Adotaram a grande civilização mundial da época, porque só essa grande civilização era digna deles, romanos.”

Ou seja, não houve dominação, mas sim revolta e interiorização de cultura e de valores quer perduraram, apesar da civilização romana. Paul Veyne diz mais, explica que os gregos sempre tiveram a supremacia cultural e intelectual, o que se compreende pela longa vida do Império Bizantino, que perdurou, como Império Romano do Oriente, 1000 anos a mais do que o do Ocidente, tão mais inculto e selvagem e de vida breve.

Mas que foi assumido como despojos pela Igreja católica – eis a base da lenda. Tão mais palatável a Hollywood, diga-se de passagem. O que não muda o fato de que o que sobrevive e tem vida longa é a parte grega do império, deletada pela tradição católica.

Quem duvidar, se debruce sobre os textos da época, todos escritos em grego, língua falada pelas elites culturais, e não o latim, língua vulgar de uma única região.

Correspondências da época atestam essas afirmações de Paul Veyne. Nelas, pode-se ler o elogio feito aos romanos por “não terem renegado sua cultura-mãe”.

Muito diferente, entre gregos e romanos, era o aspecto publicitário da vida civil. Explico : um aristocrata grego primava pela discrição, pela sobriedade e pela cultura. Um aristocrata romano primava pela ostentação de seus feitos militares. Exemplo : as estelas funerárias, exuberantes como qualquer manifestação de novo rico. Idem para os comerciantes.

Outro sintoma : na Grécia, os governantes pagavam para os mais pobres assistirem a espetáculos como as tragédias, para se educarem. Em Roma, promoviam-se o circo e a selvageria dos combates, o êxtase coletivo diante da morte. Além de tudo, espetáculo pago pelo público !

Os gladiadores eram voluntários, pois antes morrer na arena do que suportar os horrendos suplícios infringidos.

“Ver dois homens tentando matar um ao outro provocava emoções fortes, digamos as coisas como elas são. Uma curiosidade perversa, um gosto de coisa macabra, um gosto de morte, era isso ! De resto, aquela não era uma civilização mais cruel do que outra, para a época, mas sim uma civilização que tinha seus costumes […]. Não se deve procurar qualquer coerência, ali estamos num mundo sem a prédica de princípios morais.”

Pão, circo e templos são sinônimo de largueza, do que se dá ao povo quando se é rico. Para ostentar, mas também para distribuir a riqueza de modo a mascarar a dominação e as diferenças. Lembrando que não é o Estado que constrói, em Roma, é a iniciativa privada. Instada pelo Estado, é claro.

Roma é um Estado policial no qual não se fala de política à mesa, por exemplo, ou em público. Com uma classe dirigente desprovida de fé e de lei como em qualquer republiqueta atual.

É essa civilização que herdará de modo exemplar a moral cristã, teórica e religiosa, abstrata.

Marly Peres